Última alteração: 2020-08-19
Resumo
A extensa crise provocada pela pandemia do coronavírus colocou a população mundial e os governos locais frente a um cenário paradoxal. A situação de emergência instaurada pela rápida propagação do vírus explicitou a necessidade de uma forte presença do Estado, presumindo seu papel na proteção da população de um desastre iminente - uma contradição num mundo neoliberal, onde governantes de diversos países defendem o mínimo de intervenção Estatal, a flexibilização de leis trabalhistas e o fim dos sistemas públicos de saúde. Com o isolamento social como única solução aparente para prevenção contra a rápida disseminação do vírus, surgem questionamentos e disputas políticas frente a necessidade de amparo da população pelo Estado versus a preservação da economia.
Em meio à extrema tensão causada pelo violento surto viral, ações rápidas foram mobilizadas pelos governos locais. Na China, foi erguido em 48h, um hospital para 1.000 leitos – entre a espetacularização do desastre e o impressionante pragmatismo da reação chinesa, o resto do mundo ficou mudo, como se esperando chegar sua vez. Com a chegada do vírus aos demais países, hospitais de campanha foram erguidos rapidamente, da noite para o dia, criando novos leitos para suprir as demandas locais. No entanto, nos países onde altas taxas de pobreza e desigualdade social são problema endêmicos – como é o caso do Brasil – a existência de habitações precárias e comunidades superadensadas colocam em xeque a estratégia de isolamento e ressaltam uma problemática que sempre esteve presente: a necessidade de moradias e de infraestrutura adequadas à população mais vulnerável.
De fato, apesar da situação excepcional enfrentada no mundo, as emergências já fazem parte de nosso cotidiano. É o caso do rompimento das barragens de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), que deixaram para trás cidades fantasmas, cobertas de lama, e desde então, milhares de pessoas aguardando reparação através de indenizações e obras. No centro de São Paulo, o Edifício Wilton Paes de Almeida, com seus 24 pavimentos e tortuoso histórico dominial, veio ao chão em maio de 2018 após um violento incêndio consumir sua capacidade de sustentação. Levou junto, dentre outros, Selma e seus dois filhos gêmeos – obstinados ocupantes do prédio que lhes servia de moradia, enquanto as obras de seus novos apartamentos, ali, bem do lado, se encalacravam por entre os trâmites burocráticos dos programas públicos e seus agentes financeiros. Em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife, um conjunto entregue pelo BNH em 1982, com mais de 2.000 apartamentos – um para cada novo leito do novo hospital chinês – foi totalmente demolido, ao longo de 34 anos: o Residencial Muribeca, que pode ser considerado nosso “Pruitt Igoe brasileiro”, apresentou graves problemas estruturais, apenas 4 anos após a entrega das unidades. Foi somente no início de 2020 que a Justiça Federal determinou o pagamento de indenizações aos moradores, no valor de R$140 mil – quantia que ainda é altamente questionada.
Frente a tais situações, surge a pergunta: onde estão os arquitetos e urbanistas perante essas emergências? Ainda que excepcional, o surto de coronavírus acentuou conflitos sociais pré-existentes, e a incontornável necessidade de ação dessa categoria profissional. A discussão não é de hoje – temos um histórico de assessores técnicos atuando desde os anos 1960 com movimentos sociais na produção de moradia popular. No ano de 2008, a sanção da Lei de Assistência Técnica deixou a categoria dos arquitetos e urbanistas otimista com as novas possibilidades. Apostou-se, naquele momento, na legislação e consequente construção de políticas públicas de abrangência nacional. Foram criadas ações de assistência técnica no âmbito do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), e posteriormente a modalidade Entidades no Programa Minha Casa Minha Vida. O cenário se apresentava favorável, com a retomada de investimentos públicos e a criação de órgãos e normativas voltados para a política urbana. No entanto, hoje presenciamos como a dissolução de políticas públicas ocorre rapidamente, tornando praticamente dispensável o aparato legal por detrás de sua concepção.
Atualmente, há uma grande disposição dos arquitetos e urbanistas na construção de ações práticas, especialmente entre os mais jovens. São iniciativas emergentes, que frequentemente se mobilizam às margens de qualquer programa público. Algumas partem de dentro das universidades, através de grupos de pesquisa e de extensão universitária, outras de forma autônoma por pequenos grupos de profissionais. Sendo assim, a Sessão Livre “Assessorias em Emergência” tem o objetivo de colocar em debate essas novas iniciativas, que surgem tanto em decorrência de situações que exigem uma resposta rápida, quanto da necessidade de abrir novas frentes de atuação do profissional arquiteto e urbanista, que põem em xeque instrumentos consagrados de planejamento e projeto. A proposta compreende duas sessões que se complementam, expondo um quadro nacional das diversas experiências que ocorrem neste momento no país, enriquecendo o debate sobre a atuação profissional em assessoria e assistência técnica.
O primeiro trabalho, “Ocupações: possibilidades do morar”, fala sobre um processo de projeto em um edifício ocupado na Avenida Ipiranga, num contexto de um TFG, mas com proposições que têm o tempo em conta, que vão de ações emergenciais para requalificação da segurança a obras de caráter infraestrutural, com indicação dos agentes e das possibilidades de financiamento. O segundo trabalho, “Uma possibilidade técnica na produção da habitação: O caso da ‘Ocupação Solano Trindade – MNLM’ em Duque de Caxias – RJ”, aborda as trocas entre integrantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), da Assessoria Técnica do coletivo Catálise, professores e estudantes no espaço da Ocupação Solano Trindade. O terceiro trabalho, “Assessoria Técnica: entre a teoria e a prática”, trata da experiência da assessoria técnica Taramela, que atua na cidade de Fortaleza-CE. O quarto trabalho, “Planos Urbanísticos Comunitários como instrumento de luta no planejamento e assessoria popular: Muribeca e Caranguejo Tabaiares”, trata da experiência da CAUS (Cooperativa Arquitetura Urbanismo & Sociedade) em dois assentamentos na região metropolitana do Recife e discute um instrumento de planejamento popular que revela seus limites e a especificidade dos dois casos, o quinto trabalho, “A experiência das mulheres na luta pelo reassentamento da comunidade do Piquiá de Baixo, em Açailândia, MA, e o papel da assessoria técnica”, aborda o protagonismo de uma assessoria técnica em arquitetura, urbanismo e construção, frente à atuação das mulheres organizadas na comunidade do Piquiá de Baixo, em Açailândia, no estado do Maranhão.