Última alteração: 2020-08-19
Resumo
Essa sessão investiga aspectos dos processos de produção e transformação da cidade contemporânea, em particular a correlação entre a culturalização de processos de patrimonialização de bens culturais materiais e imateriais e propostas de intervenção urbana. Essa discussão de caráter transdisciplinar da cidade contemporânea, no que diz respeito a esses processos de conformação e transformações espaciais de uma cidade submetida às forças da globalização e da homogeneização, suas distintas espacialidades, novas formas de sociabilidade e expressão cultural do meio ambiente urbano, tem sido foco de trabalho e investigação do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos do Ambiente Urbano Contemporâneo (LEAUC), do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da Universidade de São Paulo (USP).
Interrogando sobre a relação e o papel do patrimônio na cidade contemporânea, objetiva tensionar e contextualizar a reflexão sobre a produção do espaço urbano e as relações entre suas espacialidades, territorialidades e sociabilidades, suas implicações e desdobramentos, sua articulação com a história, memória, identidade e lugar. Compreender o mundo para nele estarmos, para nele habitarmos, implica, neste momento, a parte as dificuldades e armadilhas da observação de um processo em curso, na consciência de que não há uma única visão do problema, nem uma única possibilidade de simplificá-lo ou discipliná-lo. Ter como objetivo afrontar (fazer frente) e melhor compreender os processos de transformação do meio urbano implica questionar em que medida dimensões conceituais, contextuais e processuais constituem-se enquanto inéditas ou fazem parte de um processo hegemônico que corresponde a uma lógica de produção do capital.
No contexto da cultura, nas últimas décadas, adquiriu maior importância, tanto nacional quanto internacionalmente, o interesse por alguma forma de inovação cultural local, com a inserção dos bens culturais e com a proteção ou reinvenção de tradições, rituais e costumes locais e em que a ideia de singular configura uma possibilidade de oferta de algo exclusivo. Nesse enquadramento, nos processos de patrimonialização, identificamos uma perspectiva da cultura como uma forma de mercadoria, e por meio desta visão, reconhecemos a construção de um processo cultural particular de ressignificação da identidade com o lugar urbano, em que a desconstituição do caráter de seu significado cultural original se conforma pela redução de seu valor simbólico e desarticulação de seu contexto urbano.
Argumentamos que em um processo caracterizado por uma política de mercantilização da cultura determinada pela lógica de um urbanismo neoliberal de (re)produção do espaço urbano, que condiciona a conformação e a configuração do território e da paisagem, observa-se: a dissolução do contexto e da identidade de tecidos urbanos tradicionais das cidades; uma banalização e tematização da paisagem; a cultura e o patrimônio histórico entendidos como mercadoria e forma de inserção das cidades no mercado mundial; uma articulação entre aspectos do planejamento urbano dessas cidades e os processos de patrimonialização.
Desse modo, propomos estruturar a discussão a partir de perspectivas que questionam as transformações e diferentes forma de apropriação do espaço patrimonial pelos habitantes e por aqueles que vivenciam esse espaço. Transformações que ao serem assimiladas imprimem um novo programa, ritmo, usos e costumes que passam a fazer parte do cotidiano e reconfiguram as relações sócio culturais do lugar. Novas formas de ocupação do espaço que
configuram interferências no seu aspecto público, vinculadas a ideia de vigilância e controle do território, com novas dinâmicas cotidianas e barreiras de controle da diferença social. Em contraposição, ao não serem assimiladas, se revelam como disputas pelo espaço e pela memória, e palco de reivindicações e resistência de manifestações culturais.
Esses processos de patrimonialização também nos trazem observações em relação aos limites das áreas de proteção - áreas centrais - e suas articulações com as áreas de entorno - áreas periféricas -, no que tange suas diretrizes e normativas de proteção, e o modo como são conduzidas as intervenções urbanas e arquitetônicas nestas áreas da cidade em relação a conformação de uma identidade e autenticidade patrimonial. Diante da análise de distintos casos desses processos e suas especificidades, identificamos que, via de regra, por um lado, constituem-se enquanto representativos de processos hegemônicos de (re)produção do espaço urbano em que as transformações atrelam-se a implementação de uma ideia de internacionalização da cidade em que a dimensão cultural configura uma condição de mercadoria e, por outro, que esses processos de classificação convergem em estratégias de planejamento que os ratificam, caracterizando um outro processo, de assimilação, marcado por conflitos e disputas.
Figuram como aspectos centrais desses processos: a dimensão cultural da preservação do patrimônio cultural na atualidade; as especificidades de processos de patrimonialização propostos pelos órgãos do patrimônio; e o processo de produção de intervenções urbanas caracterizadas por um planejamento particular que, promovendo a turistificação do espaço urbano, busca projetar a cidade internacionalmente. Entendemos prevalecer nesses processos uma lógica de produção do espaço urbano que é condicionada por transformações regidas por uma ideologia neoliberal de globalização econômica. Em assim sendo, consideramos fundamental a análise desses processos de patrimonialização sob uma ótica que incorpore as referências culturais do lugar, busque observar a diversidade social e cultural, assim como reduzir interferências em relação aos hábitos socioculturais. Portanto, sob uma ótica que busque compreender as singularidades de cada contexto, suas diversidades e manifestações culturais como questões necessárias à promoção de políticas de preservação que observem a identidade do lugar e seu caráter específico.
Nesse contexto, considerando necessária uma reflexão sobre propostas de intervenção urbana e a noção de preservação do patrimônio (elementos do patrimônio, da história e da memória da cidade), esta sessão questiona condições e singularidades de processos de patrimonialização que, por um lado, levam a criação de espaços simplificados de significado e, por outro, a criação de uma paisagem tematizada a partir da reprodução imagética e do consumo visual. Alguns estudos de caso ilustram as questões abordadas nesta sessão: os centros históricos das cidades de Ouro Preto/MG e Tiradentes/MG; o bairro Ostiense, área periférica de entorno do centro histórico da cidade de Roma; um território situado no centro histórico de Belém (PA) e aspectos singulares da preservação do patrimônio industrial no Brasil.