Última alteração: 2020-08-18
Resumo
Conforme sinaliza Paul Ricoeur (2010), a revisão da historiografia constitui um importante instrumento para se enunciar temas para discussão em qualquer recorte temporal. Neste raciocínio, a história passa a ser entendida como um conhecimento estabelecido pela relação entre o passado vivido e as respostas extraídas em um determinado presente.
Assim se inscreve a Sessão Livre As múltiplas dimensões da arte mural: aportes sobre as narrativas consolidadas e os desafios para a conservação na atualidade no VI ENANPARQ. Sua proposição objetiva investigar as significações ensejadas pela inserção de painéis de azulejaria na arquitetura brasileira neocolonial e moderna.
Deste modo, a proposta objetiva, por um lado, identificar as demarcações reais e imaginárias que concedem à arte mural atribuições e significações relevantes à afirmação de uma identidade, genuína ou ilusória, para a arquitetura brasileira. (BRANDÃO, 2002; LARA, 2018)
Interessa-nos, portanto, desconstruir os discursos hegemônicos para neles reconhecer os interesses com os quais são validadas as singularidades da produção arquitetônica brasileira – ainda que um exame mais atento revele que a inserção de murais e painéis é também assinalada como um elemento distintivo da produção ibérica e latino-americana, no entender de diversos críticos. (ALCÂNTARA, 1997; SCHWARTZ, 2013)
A análise das composições murais pretende reconhecer as interlocuções firmadas com o projeto arquitetônico que lhes dá suporte, observando-se suas distinções e afinidades. Tal viés interpretativo também pressupõe examinar as correlações existentes entre as edificações e a cidade, observando-se a contribuição dos painéis para a revisão, afirmação ou renovação dos desígnios de arquitetos e urbanistas.
Por outro lado, a proposição de uma Sessão Livre centrada no estudo de composições murais quer problematizar os aspectos de conservação e preservação patrimonial, considerando insuficiente a bibliografia de referência sobre documentação, conservação e restauro e igualmente deficitários os parâmetros instituídos pelas instituições de salvaguarda.
Apesar de relevante para o entendimento dos processos de afirmação de linguagens artísticas e arquitetônicas, a inserção dos painéis oferece múltiplas possibilidades de análise. Sobretudo aquelas norteadas pela troca de saberes entre campos disciplinares distintos: arquitetura, artes visuais, história, patrimônio e urbanismo, reunidos em torno do debate suscitado, em última análise, pela integração e síntese das artes.
O primeiro trabalho desta Sessão Livre tem como objeto de pesquisa a instalação da obra Kilomètre 47, de Maria Helena Vieira da Silva, no interior do antigo refeitório da Universidade Rural – atualmente utilizado como salão de convivência estudantil do campus-sede da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
A investigação visa enunciar conexões entre as narrativas suscitadas pela visualidade do painel encomendado em 1943 e os registros documentais alusivos à interlocução desta obra com a expressão neocolonial do campus universitário, implantado em uma parcela da antiga Fazenda Imperial de Santa Cruz, em 1938, por determinação do Ministério da Agricultura do governo Vargas.
O segundo trabalho aborda a dimensão urbana das composições murais, tendo como objeto de estudo a utilização de painéis de azulejaria assinados por Athos Bulcão no revestimento das vedações externas do Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro. O complexo edificado, assinado por Oscar Niemeyer no início da década de 1950, ocupa um lote de grandes dimensões nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas.
A pesquisa problematiza os aspectos perceptivos ensejados pela composição abstrata-geométrica que transforma paredes em grandes telas, visíveis desde grande distância. Deste modo, os painéis de Bulcão contribuem para a apreciação continuada do edifício, dentro da concepção do passeio arquitetônico, com assimilação dependente da significação gerada pelo diálogo estabelecido entre arte e arquitetura.
O terceiro trabalho centra-se na questão patrimonial. Parte da análise de dois painéis de azulejos integrados à edificações modernas assinadas pelo arquiteto Jorge Ferreira, no caso o Pavilhão de Cursos e o Pavilhão Refeitório. Ambos os edifícios integram o núcleo histórico de Manguinhos – campus sede da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.
O estudo visa compreender as temáticas desenvolvidas, os processos produtivos, os materiais empregados e as relações com o entorno, sendo particularmente desafiadora a proximidade do Pavilhão de Cursos com a avenida Brasil. Nesse sentido, a pesquisa apresenta considerações sobre o estado de conservação dessas obras, levantando subsídios para a adoção de práticas para a salvaguarda dos bens.
O quarto trabalho também se alinha com os debates estimulados pela significação patrimonial da arte mural, observada a partir da interlocução com as problematizações do campo arquitetônico. Mas de modo distinto do trabalho precedente, centra-se nas discussões motivadas pelo tema da síntese e da integração das artes na historiografia da arquitetura moderna brasileira.
A investigação tem como foco a inserção de obras criadas por Athos Bulcão para o Palácio do Itamaraty e edificações anexas que compõem o Ministério das Relações Exteriores, cujo projeto arquitetônico, de Oscar Niemeyer, constitui um dos principais referenciais do núcleo administrativo de Brasília, em seu Eixo Monumental.
O quinto trabalho discute a questão da transposição de fronteiras. O estudo aborda a utilização de elementos da obra de Cândido Portinari na concepção de três painéis assinados pela artista portuguesa Maria Keil nos anos 1950 – no terminal da companhia aérea TAP em Paris, no aeroporto de Luanda e em um conjunto residencial de Lisboa.
A pesquisa se apoia no esgarçamento das tramas que rotineiramente atribuem um único sentido para a assimilação de referências – da “metrópole” para a “colônia”. Deste modo, coloca em xeque o caráter eurocêntrico da historiografia, valendo-se da decolonialidade para desconstruir as narrativas canônicas.
O encadeamento entre os cinco trabalhos almeja construir elos para uma discussão assentada na revisão da historiografia e das práticas consagradas no campo da conservação. Com isso, o grupo pretende tecer algumas considerações sobre o passado e sobre o presente, como bem nos adverte Paul Ricoeur (2010).