Última alteração: 2020-08-18
Resumo
A sessão aqui proposta parte de algumas experiências recentes de pesquisa que compartilham a intenção de alargar as fronteiras do raciocínio histórico da produção do ambiente construído para além dos limites disciplinares tradicionais de análise do campo da arquitetura e do urbanismo – seja na eleição de seus objetos, de suas metodologias ou de suas fontes documentais, por exemplo. Com essa perspectiva em vista, pretendemos discutir como, nesses trabalhos, a consulta a determinados acervos pessoais e institucionais (vinculados e produzidos por uma complexa trama de instituições privadas ou públicas, órgãos da imprensa especializada e periódica, agentes do campo, entre outros) abre a possibilidade de emergirem outros padrões de interpretação histórica, tensionando formas narrativas canônicas de análise, estabelecidas na historiografia da arquitetura e do urbanismo, e por vezes representadas pela excessiva ênfase nas trajetórias individuais, nas obras excepcionais ou mesmo nas sínteses propostas com a delimitação estanque de movimentos, grupos ou escolas.
Assim, buscando pesar o papel de determinadas fontes tradicionais do discurso histórico disciplinar face a outros conjuntos documentais, a discussão entre as pesquisas recém concluídas que compõem essa mesa, pretende contribuir para ampliar a perspectiva investigativa do campo para setores ainda de difícil trânsito para a historiografia: as práticas cotidianas e a ocupação do ambiente após construído, as experiências do lugar e suas representações, a dinâmica institucional e corporativa da profissão, seu lugar no meio social e no campo político, sua relação com o mercado e o lugar da concorrência profissional, seu processo de encomenda, decisão e produção, por exemplo. São conjuntos documentais que requerem novos recortes de pesquisa, que convocam outros aportes teóricos-metodológicos para sua análise, que levantam elementos ainda externos à compreensão do processo de pensamento e produção do ambiente construído. Fato é que, cada arquivo coloca questões diferentes e guarda, em si, potencialidades e restrições para respondê-las.
A mesa pretende também discutir os modos de aproximação e interpretação das diversas fontes documentais textuais – tais como correspondências, relatórios, projetos, atas, pautas, diários, notícias, depoimentos, dentre outros – mas também dos registros não textuais, que devem ser analisados para além de sua condição de ilustração de uma narrativa prévia. Nesse espectro de possibilidades destaca-se a diversidade de fontes visuais existentes, como fotografias, pinturas, mapas, desenhos, croquis, documentos gráficos (projetos), além das anotações de registros cotidianos. Cada qual se relaciona de modo dialético com o processo de pesquisa, com os problemas históricos de cada investigação, com arcabouços teóricos-metodológicos particulares.
A mesa está constituída por pesquisas da área da história da arquitetura e urbanismo, finalizadas entre os anos 2014 e 2019, focadas em temas heterogêneos, mas que se alinham em seu objetivo de entender a arquitetura como arte coletiva e parte indissociável das dimensões políticas e culturais da sociedade no tempo. Nesse sentido, é importante frisar que tais pesquisas devem ser consideradas como amostragens de um processo contemporâneo muito mais amplo e compartilhado por inúmeros outros pesquisadores, ao menos nos últimos trinta anos de consolidação dos programas de pesquisas na área de história da arquitetura e do urbanismo. Assim, a mesa pretende, ao colocar lado a lado tais processos individuais de pesquisa, discutir as relações entre arquivo, fonte e narrativa histórica, destacando seus rendimentos e limites, avaliando as dificuldades ou incentivos encontrados, apontando caminhos que permanecem em aberto para possibilidades novas de investigação.
A primeira comunicação, “Instituições de Arquitetura e campo disciplinar: considerações sobre acervo e documentação”, pretende discutir a potencialidade da consulta aos arquivos institucionais para a inclusão de novas problemáticas a serem enfrentadas pelos estudos históricos sobre a disciplina. Com ênfase nas associações de representação profissional, aborda a peculiaridade de seus conjuntos documentais, bem como as armadilhas das fortes narrativas oficiais para a pesquisa histórica e o papel dos registros individuais, de cotidiano e da memória oral – possível contraponto aos discursos de poder institucionalizados.
O trabalho “Percursos de pesquisa entre a história e o projeto no acervo de Flavio Motta” tem como ponto de partida o acervo pessoal como fonte para uma construção narrativa que percorre parte da constituição do curso da FAUUSP, procurando discutir os entrecruzamentos da trajetória individual e história institucional. Ao recuperar os principais debates, conteúdos e disciplinas nas quais colaborou o professor, o trabalho pretende discutir a natureza dos registros documentais do acervo e seus modos de enfrentamento. Mais do que o conteúdo particular do panorama institucional estudado, pretende-se aqui reconhecer ao mesmo tempo as potencialidades e os limites do olhar sobre as trajetórias individuais e dos acervos pessoais como meios de estabelecer outras visadas no processo da pesquisa.
Diálogos entre pesquisas com foco nas grandes obras da década de 1960-70 vêm demonstrando de que maneira tais objetos permitem desvelar com maior clareza alguns aspectos da prática projetual, dos processos produtivos e das mediações político-institucionais. Tais contribuições apontam para a construção de uma agenda a partir de outros instrumentos de tessitura da narrativa historiográfica sobre a produção do ambiente construído, desde o ponto de vista teórico-metodológico como também das fontes documentais.
Também questionando as leituras frequentes da arquitetura sobre o ponto de vista exclusivo da obra acabada, o texto “O edifício como documento e o reconhecimento de sua produção” propõe um método historiográfico que compreenda a sua complexidade como objeto-documento, considerando então, desde a sua encomenda, elaboração e projeto, até a sua construção propriamente dita. Para tanto, edifícios simbolicamente representativos do século XX na cidade de São Paulo foram revisitados a partir de um entendimento mais amplo do que é sua materialidade, nos momentos em que a arquitetura passa a se relacionar com determinadas tradições técnicas, dinâmicas executivas e o mercado da construção civil.
Os processos de atribuição de valor às obras de arquitetura e urbanismo - muitas vezes pautados pelas escolhas estéticas ou referenciadas por linguagens características de escolas ou círculos profissionais - são colocados em pauta no texto “As operações cotidianas e a história da arquitetura escolar”. Tendo como foco a arquitetura escolar e a forma como a mesma é apropriada no uso cotidiano, tal investigação evidencia as possibilidades ainda abertas sobre a perspectiva dos usuários como contribuição para a historiografia da arquitetura e do urbanismo.