Última alteração: 2020-08-19
Resumo
Nas últimas décadas, o chamado giro decolonial latino-americano vem assinalando a permanência da chamada “colonialidade do poder” na contemporaneidade. Trata-se de um conjunto de práticas e discursos, fundados no colonialismo, inerentes à fabulação de uma distinção da Europa em relação a outros lugares e culturas: com base na ideia de “raça”, a “branquitude” se apresenta como traço identitário e civilizatório da ética capitalista (QUIJANO, 1992 e 2000; GROSFOGUEL, 2006).
O racismo, então, ainda é um elemento regulador de várias instâncias da vida social. Tão crucial, que também é “racismo epistêmico” (GROSFOGUEL, 2013): “o princípio organizador daqueles que podem formular um conhecimento científico legítimo e daqueles que não podem” (BERNARDINO-COSTA et al., [2018] 2019, p. 11), conduzido pela “geopolítica do conhecimento” (MIGNOLO, 2002). Ela institui modos de conceber, produzir e transmitir saberes que legitimam uma cosmovisão eurocêntrica e cartesiana que não só descreve como ao mesmo tempo celebra uma separação entre mente e corpo: desvalorizam-se, assim, as sensações, as experiências e as percepções corporais como possíveis fontes de conhecimento. Decolonizar o conhecimento, e, por extensão, as ciências e a Academia é, então, tarefa exigente da valorização dos saberes oriundos de conjunto mais diverso de corpos-mentes-localizações, para além do conhecimento hegemônico que se forja descorporificado e sem lugar (PALERMO, 2018).
A Sessão Livre DECOLONIALIDADE, PAISAGENS E COMUNIDADES AFRODESCENDENTES NO BRASIL reúne pesquisadoras e pesquisadores com formação em arquitetura e urbanismo, geografia, ecologia e antropologia. Nossas intenções, com a sessão, são colaborar com os debates a respeito dos conflitos enfrentados por grupos afro-brasileiros e vir em auxílio a conceituações mais robustas do espaço e das espacialidades. Ambos são ainda um tanto incipientes tanto na literatura decolonial (que algumas e alguns de nós se filia mais diretamente) quanto nos estudos com enfoque nas paisagens e nos paisagismos (aos quais todas e todos de nós dedicam alguma atenção). Com base numa “definição ampla de decolonialidade” (BERNARDINO-COSTA et al, op. cit., p. 9), daremos mais centralidade não a uma bibliografia estritamente decolonial, mas à tentativa de aprofundamento de uma temática que julgamos decolonial: a resistência de grupos étnico-raciais marginalizados, especialmente as populações negras no Brasil que deixam marcas sobre as paisagens, em suas distintas manifestações.
Diante destas questões, apresentamos cinco trabalhos, descritos subsequentemente.
O TRABALHO 01, Pensando na encruzilhada: giro decolonial, paisagens, paisagismos e paisagistas do Sul, problematiza essa literatura para dar base à escolha da “encruzilhada” como metáfora espacial enunciadora de uma convergência não hierarquizada de conhecimentos situados. Partindo das premissas de que a colonialidade se “espacializa” e que, por isso, variados grupos sociais desenham paisagens em colaboração ou em disputa, pergunta-se o que poder-se-ia chamar de “paisagem”, “paisagismo” e “paisagista”. Além disso, defende-se a ideia de que há paisagismos ancorados no Sul Global – isto é, provenientes de matrizes étnico-raciais minoritarizadas, como as africanas e as indígenas, que estruturam alguns saberes que não fazem distinção entre mundos materiais e espirituais ou entre o humano e a natureza, por exemplo.
A literatura decolonial mantém-se como uma das referências do TRABALHO 02, que tem a pretensão de se inserir no debate sobre a participação da população afrodiaspórica na produção das cidades coloniais do Brasil – o que tem sido geo-historicamente suprimido das narrativas oficiais. Para isso, apoia-se nos estudos que informam que os saberes da população africana escravizada tiveram papel fundamental, durante o século XVIII, tanto na estruturação da extração aurífera quanto na construção dos elementos construtivos da paisagem histórica destas cidades. Assim, o trabalho almeja uma caracterização contra-hegemônica da região onde atualmente se localiza Ouro Preto. Seu título: Nas sombras da cidade colonial: uma caracterização decolonial da paisagem da Serra de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.
O TRABALHO 03, Paisagens ativas no Baixo Sul-BA e a experiência da construção de um inventário sob os olhos de um nativo, parte do conceito de Anna Tsing (2015) de “paisagens ativas”, com vistas a transcendê-lo. Trata-se de um estudo em andamento sobre essa região do estado da Bahia, onde há comunidades e vilarejos quilombolas, beiradenses, indígenas e ribeirinhos que travam contato com os mais diferentes tipos de fitofisionomias florestais de Mata Atlântica. Tendo como valiosa vantagem um de seus autores ser um nativo, o que tem compensado a ausência de dados oficiais, o inventário tem dado muito mais atenção às práticas que desenham as paisagens para além de seus aspectos visuais, algumas delas já preliminarmente esmiuçadas no resumo.
Dos quintais quilombolas aos quintais urbanos: identificando funções e suas ressignificações no processo de urbanização metropolitana do Rio de Janeiro é o título do TRABALHO 04, que visa à apresentação de resultados iniciais de uma pesquisa de longa duração no Quilombo Cafundá-Astrogilda. Ele se localiza no maciço da Pedra Branca, no bairro de Vargem Grande, na cidade do Rio de Janeiro – uma região cuja paisagem passou por recentes e contundentes transformações decorrentes da gestão da capital fluminense voltada aos megaeventos mundiais. Uma leitura crítica da legislação da área, que vem mantendo acelerados os processos de expansão urbana que tanto a impactam, foi possibilitada a partir de um estudo qualitativo que fez com que se definissem “paisagens ideais” – na ótica de mulheres que conduzem atividades nos quintais do quilombo, ligadas à sociabilidade, ao cuidado e à produção e à reprodução de espécies ritualísticas, para a alimentação ou geradoras de renda.
Finalmente, o TRABALHO 05, Traçando pontes entre a casa-aldeia moçambicana e o espaço exterior religioso afro-brasileiro, resulta de uma demanda do terreiro de candomblé Ilê Asé Oju Ogún Fúnmilaiyó, em Foz do Iguaçu, Paraná, cujos/as filhos/as de santo buscavam receber o reconhecimento científico de suas plantas e seus diversos usos. Inicialmente, o resumo esboça a descrição de um “paisagismo dos orixás”, cujas escolhas das espécies têm estrita relação com os rituais (nos quais por vezes elas são ingeridas, por outras usadas como ornamento, por exemplo) e seriam exigências de divindades do candomblé. Depois, propõe um cotejamento com outra paisagem do Sul: a da chamada “casa-aldeia”, na cidade do Dondo, Moçambique – no que diz respeito a semelhanças concernentes ao paisagismo comestível e aos usos ritualístico, sagrado e medicinal.