Última alteração: 2020-08-18
Resumo
A onda neoliberal das décadas de 1980 e 1990 na América Latina seguiu seu rumo sobre o século XXI nas políticas de patrimônio, mais acomodadas às organizações e culturas institucionais e, em diversos aspectos, naturalizada no pensamento corrente de modo hegemônico.
Discursos e práticas que buscavam flexibilizar normas, descentralizar serviços públicos, reformar e reduzir a máquina pública através de concessões ou parcerias com os setores privados passaram a ser frequentes. O modelo gerencial privado dissemina-se como ideal e, nos centros históricos, políticas de valorização e rentabilização fundiária, de revitalização, de empreendedorismo urbano (COMPANS, 2004), de atração (SANT’ANNA, 2004), multiplicaram-se em diferentes níveis, promovidas pelo poder público.
Em diversos países latino americanos, como no Brasil, esses anos correspondem também aos primeiros após a redemocratização, quando os projetos de futuro desenhados nos novos textos constitucionais, conduzidos por grupos progressistas, foram levados adiante. Na saúde, na educação, na assistência social, no planejamento urbano e na cultura, desenvolveram-se ações de estruturação de políticas públicas, contemplando aspectos de financiamento, regulamentação, organização e fortalecimento institucional. Lugares até então esquecidos e temas pouco representados ou fora da agenda começam a aparecer, e atores como quilombolas, pequenos agricultores, pescadores e mestres de cultura popular começam a esboçar caminhos de acesso às políticas públicas.
Assim, nas primeiras décadas do século XXI, alternaram-se convicções e práticas originadas de vertentes distintas - mais ou menos liberais ou progressistas - que imprimiram abordagens e objetivos divergentes sobre as políticas públicas e geraram resultados com impactos diretos sobre grupos específicos. Em algumas circunstâncias, essas polaridades, com o tempo, se acomodaram e fundiram, configurando práticas ambíguas.
Como compreender esse período transitório e seus impactos sobre a gestão da preservação e conservação das cidades e bairros históricos? Como pensar metodologias de aproximação aos objetos de estudo que consideram essa complexidade, esse trânsito aparentemente contraditório de ideias, por vezes ambíguo no trato da coisa pública? Quais os conceitos que devem iluminar essas leituras?
No plano teórico-metodológico, a confluência da luta por direitos à memória e a expansão do neoliberalismo pode ser problematizada a partir da análise de idéias e práticas patrimoniais. Tal análise permite a compreensão dos modos de produção dessas visões, conectadas por diferentes atores, agências, ideias e práticas, com reflexos diretos nos processos de reconhecimento e preservação do patrimônio cultural.
O objetivo desta mesa é, portanto, debater pesquisas fundadas em situações concretas de projetos, planos e ações na América Latina e no Brasil nesse período, que apresentem abordagens teórico-metodológicas produtivas para a compreensão da sua complexidade, tanto em seus aspectos hegemônicos como contra-hegemônicos. Desta forma será possível observar, em um contexto de difícil interpretação, como se produziram os avanços recentes, decisivos para os desafios atuais. Ainda, a mesa contribui, em termos metodológicos, para o aprimoramento do uso da genealogia e geografia das idéias e práticas como ferramentas úteis para a compreensão do processo histórico de produção, formas de financiamento e regulação dos bens culturais na América Latina e Caribe, especialmente no Brasil.
O primeiro trabalho apresentado estabelece uma reflexão crítica sobre o trânsito internacional de ideias, princípios e práticas de políticas patrimoniais que possibilita compreender os processos de disputa de hegemonia por um projeto de reconhecimento e preservação do patrimônio cultural cujo núcleo central é a defesa do direito à memória e às identidades. Esse projeto apoia-se nos postulados desenvolvidos desde o final da Segunda Guerra Mundial construídos a partir da atuação da UNESCO e fortalecidas no curso da transição democrática observada na América Latina e Caribe. Em diálogo direto, a segunda comunicação versa sobre o Programa Monumenta, desenvolvido no Brasil entre as décadas de 1990 e 2010, trazendo reflexões detalhadas sobre a apropriação do modelo por perfis distintos de cidades. Criado em um ambiente interno de escassez de recursos federais, por influência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, foi marcado inicialmente por uma forte retórica neoliberal e uma visão instrumental da cultura, contudo, ao longo do tempo, posturas mais abertas às dinâmicas locais reconfiguraram premissas e produziram resultados importantes em municípios pequenos. O terceiro trabalho tematiza a habitação social nas políticas de patrimônio cultural no Brasil desde os anos 1970, discutindo casos concretos, suas motivações econômicas e identitárias, e as relações entre a sociedade civil e os órgãos de preservação diante das pressões contemporâneas de desaparecimento. A mesa se encerra com a contribuição relativa à análise de como efetivamente tem se dado a participação dos grupos sociais detentores de bens culturais imateriais em processos de salvaguarda, a exemplo do Samba de Roda do Recôncavo Baiano e da Arte Kusiwa Wajãpi, com foco nos mecanismos e estratégias criados para realizá-la, favorece-la e ampliá-la. O potencial da abordagem participativa da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial será também examinado a partir dos resultados da realização de inventários de referências culturais em sítios urbanos tombados, a exemplo do que foi feito na cidade de Rio de Contas, na Bahia, focalizando-se, nesses casos, esses inventários como instrumentos de participação. Serão abordados ainda casos de salvaguarda do patrimônio urbano em países como a França, onde, em centros históricos como os das cidades de Nancy e Bordeaux, estão sendo propostas e implementadas novas formas de participação cidadã por ocasião da revisão dos planos de salvaguarda e valorização desses sítios protegidos.