Portal de Conferências da UnB, O Futuro em Tempos de Pandemia

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Lições do Brasil sobre saúde global em tempos de covid-19
Francisco Ortega

Última alteração: 2020-05-27

Resumo


Dois meses antes de o primeiro caso de covid-19 ser reportado em Wuhan, na província de Hubei, China, em 10 de dezembro de 2019, o Global Health Security Index, compilado pela Nuclear Threat Initiative e pela Escola de Saúde Pública da Johns Hopkins University, publicava um informe que ranqueava 195 países em função de sua “preparatividade” (preparedness) para enfrentar uma pandemia, como a da Covid-19. Nesse ranking, os Estados Unidos ocupavam o primeiro lugar, e o Reino Unido, o segundo. Coreia do Sul ocupava o 9º, o Brasil o 22º, Singapura o 24º e a China o 51º (GHSI, 2019; DALGLISH, 2020). Quando olhamos esse ranking seis meses após sua publicação, as predições não poderiam ser mais equivocadas. Estados Unidos e Reino Unido têm produzido respostas desastrosas à epidemia, envolvendo omissões criminosas, difusão de fake-news, confusões e adiamentos das medidas necessárias quase criminosos. Nenhum dos dois países parece ter o equipamento necessário de proteção de profissionais, nem número suficiente de leitos hospitalares e de UTI. Hoje, 22 de maio de 2020, o primeiro contabiliza 1.626.311 casos e 96.574 mortes, e o segundo, 254.195 casos e 36.393 mortes. Diante desses resultados, não surpreende que a revista Foreign Policy tenha definido a covid-19 como a “pior falha de inteligência da história dos Estados Unidos” (ZENKO, 2020). Por outro lado, nações asiáticas como Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e China têm desenvolvido as respostas mais rápidas e eficazes para conter o avanço da pandemia (DALGLISH, 2020). A nova forma de racionalidade que encarna a “preparatividade” tem contribuído para redefinir a saúde global como campo biopolítico (LYNTERIS, 2018).  “Preparatividade” é um conceito-chave na Antropologia médica e nas humanidades médicas que remete à análise crítica de novas abordagens epidemiológicas e de saúde pública para antecipar e se preparar diante de epidemias de doenças infeciosas (LAKOFF, 2007; 2017). Todavia, a pandemia de covid-19 tem revelado uma grave falha na “preparatividade” desses países. As consequências para a saúde global são importantes: um artigo recente da Lancet revela que 85 % de todas as organizações de saúde têm suas sedes em países do Norte Global e a metade dos líderes de saúde global são cidadãos dos Estados Unidos e do Reino Unido. E, ainda, o que é mais sério, modelos de saúde global baseiam-se em assistência técnica e capacitação realizada por esses países, cuja resposta à pandemia tem sido “esclerótica e atrasada, na melhor das hipóteses” (DALGLISH, 2020). Os motivos das falhas na “preparatividade” para a pandemia são de natureza diversa e não são objeto deste texto. Instituições de saúde pública concebem “preparatividade” a partir de métricas para mitigar a mortalidade. Em contraste com uma compreensão tecnocrática e gerencial da saúde pública global, sugerimos aqui algumas maneiras pelas quais o campo da Medicina Social, especificamente na América Latina, pode fortalecer o impacto do papel da Medicina e da Saúde Pública na pandemia (BIRN; MUNTANER, 2019; BREILH, 2019; MENDES et al., 2017). Quando falamos do campo da Medicina Social latino-americana, estamos nos referindo, no caso do Brasil, ao campo da Saúde Coletiva (OSMO; SCHRAIBER, 2017; VIEIRA DA SILVA; PINELL, 2014). Acreditamos que essa perspectiva mais abrangente englobaria, por um lado, a análise das condições sociais que impedem ou aumentam as iniciativas de mitigação da mortalidade e que passariam pelo fortalecimento dos sistemas de saúde com foco na Atenção Primária, claras diretrizes para triagem de casos e até intervenções socioeconômicas e de saúde pública que diminuam as disparidades de classe e de raça e seus impactos na saúde. Por outro lado, os debates gerados atualmente sugerem a necessidade de avançar muito mais nessa agenda “social”, repensar lógicas, valores e mercados neoliberais, e seu impacto prejudicial sobre os sistemas de saúde e, mais amplamente, sobre a geopolítica da elaboração de políticas globais (ALAMES, 2020).


 


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