Portal de Conferências da UnB, VI Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

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PENSAR OS ARQUIVOS DE ARQUITETURA COMO UM MODO DE ESCRITA DA HISTÓRIA
Priscilla Alves Peixoto

Última alteração: 2020-08-18

Resumo


Desde o final dos anos 1960, os modos de fazer história da arquitetura passaram por profundas transformações. Contribuíram para isso tanto o diálogo produtivo com campos de saber como o incremento de acervos e a construção e localização de fontes até então pouco utilizadas pelos historiadores da área. Novas perspectivas de leitura e aparatos teórico-metodológicos até então menos usuais na prática historiográfica em arquitetura também passaram a tensionar lugares e temáticas consagradas. Relatos especializados sobre personagens e episódios canonizados na historiografia foram revisitados e interpretações até então recorrentes foram colocadas em suspensão. Eventos, atores sociais e questões subestimados ou obliterados nas narrativas dos manuais de história da arquitetura se investiram de uma densidade insuspeitada a partir do cotejamento com materiais pouco ou nada explorados. Subjacente a isso, investimentos em programas de pós-graduação e pesquisa mundo afora conferiram aprofundamento e especialização inéditos ao trabalho do historiador de arquitetura (COHEN, 1999).

Ainda em curso, um dos efeitos desse movimento mais geral de renovação do fazer histórico na arquitetura é o crescimento de estudos de natureza historiográfica, comprometidos em problematizar os autores, os meios e os modos de produção da história da arquitetura. Historiografia, portanto, aqui compreendida como o ramo da história que “se interessa pelos historiadores, por sua concepção de história, por seu método, por sua produção, assim como pelos usos da história”[1] (OFFENSTADT, 2011, p.5). Alinhada, do mesmo modo, a um empenho em “situar os historiadores no seu tempo, nos lugares que os formam e que eles habitam, na prática de seu ‘metier’” (Idem, p. 3).

Assim, os compromissos ideológicos, a inserção em determinados circuitos intelectuais, artísticos e arquitetônicos, o lugar social, os vínculos institucionais e suas implicações na escrita da história passaram a ser esquadrinhados em investigações que investiram o mundo construídos de outras camadas. Trata-se de uma história das ideias, dos desejos e das memórias que fomentam e interrogam sua produção. Prática investigativa que já estava presente em um dos livros mais célebres de Françoise Choay, “A regra e o Modelo. Sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo” (1980). Nele, a autora “coloca em parênteses os edifícios efetivamente construídos, para tratar somente do espaço e da cidade [enquanto] escritos. Seu objeto pertence à ordem do texto”[2] (CHOAY, 1996[1980], p.15).

Decorrente desse processo, os próprios escritos de história, de teoria ou de crítica da arquitetura passaram a ser tratadas também como fontes. Nas duas últimas décadas, cabe citar aqui as contribuições de Panayoitis Tournikiotis (1999), Anthony Vidler (2008) e Gevork Hartoonian (2011), dedicadas à análise das narrativas dos principais historiadores da arquitetura moderna. Mais recentemente publicado, pode-se mencionar ainda o trabalho de Hélène Jannière (2019) engajado de maneira mais específica com a história da crítica da arquitetura.

De natureza similar, ainda que focada no entendimento do caso brasileiro, seja na dissecação do processo que conduziu à construção de leituras reincidentes sobre cultura arquitetônica nacional, seja nas formas de apropriação, inserção e circulação da arquitetura moderna brasileira na historiografia internacional, são incontornáveis as contribuições de Carlos Martins (1999) e Nelci Tinem (2006), como também os esforços sistemáticos e coleções de textos que Margareth da Silva Pereira, José Tavares Correia de Lira e Gustavo Rocha-Peixoto têm empreendido nas três últimas décadas. Estes últimos dotando o debate de uma especial contribuição: expandindo-o para além de um recorte temporal circunscrito ao século XX e problematizando, sobretudo, o próprio ofício do historiador de arquitetura e seus desdobramentos.

As consequências do processo que acabamos de descrever, certamente trazem implicações diretas para a maneira que os trabalhos contemporâneos de história da arquitetura têm sido produzidos. No entanto, o que gostaríamos de nos dedicar de maneira mais específica aqui é sobre os impactos que este debate historiográfico tem tido na produção, tratamento e arquivamento de fontes de arquitetura. Afinal, se uma atenção à escrita da história está intimamente ligada a uma atenção às fontes, o seu local de guarda e a arquitetura arquivística dos acervos deixam de ter um papel secundário para, ao contrário disto, fazer parte ativa da reflexão proposta.

Em um debate historiográfico mais amplo, este aspecto é abordado de maneira aprofundada por Paul Ricoeur (2000). Ao retomar a problematização da “operação historiográfica” enunciada por Certeau (1975), Ricoeur entende a “memória arquivada” como sua primeira fase. Explicar-nos-emos melhor.

A referida operação é uma noção com a qual Certeau e Ricoeur buscam demonstrar que a história não é um relato, mas sim uma prática. Neste contexto, os arquivos participam desta operação como um lugar em que a história rompe com a memória, pois aquilo que resiste no “espaço habitado” e no tempo vivido, aquilo que grupos ou indivíduos desejam legar às gerações futuras em “testemunhos”, ganham estatuto de prova documental, fontes.

Sobre esta “memória arquivada”, Ricœur apresenta, por fim, uma última questão, uma aparente contradição inscrita nos arquivos. Uma vez que eles podem ser vistos como memórias em “estágio declarativo”, que buscam deliberadamente compartilhar experiências para além do vivido, a seleção do que enunciam resguarda também aquilo que não declaram ou não conseguem declarar, “testemunham por seu mutismo” (RICOEUR: 2017, p.185).

Aproximando as questões enunciadas por Ricoeur dos estudos arquitetônicos, pode-se perceber que apenas uma pequena parte dos trabalhos recentes têm tangenciando este ponto. No caso brasileiro, um dos exemplos é o artigo “Um acervo, uma coleção e três problemas: a Coleção Jacques Pilon da Biblioteca da FAUUSP” de Joana Melo (2016). Em geral, com relação ao tema “arquivos e arquitetura”, são mais numerosos estudos ligados às questões patrimoniais e que tratam, em seu bojo, de questões correlatas tais como memória, valor e significação cultural e os trabalhos ligados a questões arquivísticas e que trazem consigo uma preocupação mais técnica em relação a documentação.

Assim, a sessão livre aqui proposta busca provocar ensaios de seus partícipes que tirem as delimitações das coleções e as estruturas arquivísticas de um lugar “naturalizado”. Para que, interrogando-as e tensionando-as, construam questões nas quais possa-se pensar a arquitetura destas “memórias arquivadas” também como construções históricas. Ou ainda, os arquivos como modos de escrita da história.


[1] Tradução nossa.

[2] Tradução nossa.


Palavras-chave


arquivos; historiografia; arquitetura

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