Portal de Conferências da UnB, VI Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

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NEBULOSAS DO PENSAMENTO URBANÍSTICO: MODOS DE NARRAR
Josianne Cerasoli, Margareth da Silva Pereira

Última alteração: 2020-08-19

Resumo


A narrativa, como modo de organização discursiva, tem ocupado o conhecimento histórico e tem mobilizado debates que multiplicam perguntas sobre as próprias formas de narrar. Uma das primeiras ponderações sobre o tema, por exemplo, Heródoto, apresenta três motivos para justificar a narrativa: “para que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo, nem fiquem sem renome as grandes e maravilhosas empresas, realizadas quer pelos Helenos quer pelos Bárbaros; e sobretudo a razão por que entraram em guerra uns com os outros [...].” (Heródoto, Histórias).

Apesar de explicitar para que e porque narrava, seu texto nada tem do sentido apaziguador sugerido em sua resposta. Nele, entrecruza numerosas questões acerca do lugar dos testemunhos, das memórias, da alteridade, das razões das narrativas, de modo a se justificar o título da obra mantido no plural: são histórias.

Não apenas o que se narra, a relatividade de pontos de vistas e o estatuto da verdade são tidos como importantes quando se escreve. Ainda na Antiguidade, Aristóteles amplia essas questões: como se narra? Como as palavras ganham sentido quando articuladas? A partir daí distingue categorias de palavras e de gêneros de discurso, e acrescenta à pluralidade a alteridade, pensada nas reflexões dedicadas à retórica, à poética e à política.

Longe de propor uma genealogia das reflexões sobre narrativa, essas observações parecem oportunas por serem mobilizadas, contrastadas, e intensamente criticadas tanto por historiadores quanto por filósofos, sobretudo aqueles envolvidos nas nebulosas intelectuais dedicadas às análises de discurso desde os anos 1960-70 e suas imbricações com o agir e o pensar. A desnaturalização da narrativa, a reflexão do campo de conhecimento sobre suas próprias práticas, a desconstrução de fronteiras entre os campos, os deslocamentos teóricos no campo do conhecimento e da historiografia são heranças que continuam a indagar o narrar.

Relações entre linguagem e poder; considerações sobre sujeito e subjetividade; condições de enunciação e possibilidade da verdade histórica; são temas que têm atravessado vários campos disciplinares. Cada vez mais, o ofício do historiador – e inclusive do historiador da arquitetura e do urbanismo – tem sido colocado diante de perguntas que atualizam antigas questões sobre práticas e regimes de memória e de temporalização: quem narra? Para que(m)? Sobre o que se narra?

Na atualidade, as formas de narrar têm passado pelo crivo de embates sobre diferentes práticas – corporais, discursivas, visuais, políticas. Notam-se deslocamentos epistemológicos provocados por esses embates no interior das discussões decoloniais, graças a uma historicização e crítica rigorosas acerca de quem narra e pode falar. Esse estado de coisas sinaliza o quanto a questão mobiliza a sensibilidade contemporânea e quão pertinente é o tema quando se aproxima questões de narrativa daquelas do conhecimento científico, histórico, antropológico e político. Trazida ao campo do urbanismo, essa discussão não se resume ao debate sobre qual história do urbanismo narrar. Ao tomar como foco a cidade, locus privilegiado da vida social e política, o urbanismo carrega para a narrativa seu aspecto múltiplo e transdisciplinar.

Além aproximar mais uma vez essas indagações de pesquisas sobre história e historiografia do urbanismo, esta sessão temática é motivada pelo propósito de trazer ao debate público alguns temas e aspectos desenvolvidos a partir de um trabalho reunido no terceiro tomo da coletânea Nebulosas do pensamento urbanístico: modos de narrar. Depois dos tomos sobre Modos de pensar e Modos de fazer, buscamos discutir a diversidade de entendimentos sobre as intrigas que emergem na trama e na tessitura histórica. São indagações advindas de experiências de pesquisa e escrita dos diferentes grupos que constroem essa investigação coletiva sobre a formação do pensamento urbanístico. Busca-se considerar a multiplicidade de visadas sobre o urbanismo, indagar sobre as formas de vestígios que sustentam narrativas e interrogar sobre o que permanece e desaparece, ou seja, as sedimentações de saberes comuns e a parte de fragmentos e eventuais desvios.

A atenção à linguagem, no ato de interpretar, compreender e, sobretudo, trazer à tona a configuração do pensamento urbanístico, coloca, como se vê, as narrativas em um campo de indagações que é específico, não por ser especializado, mas, por sua irredutível pluralidade. Múltiplo, plural, citadino e urbano, concreto e abstrato, o campo do urbanismo requer que, ao lado do texto, se interpele também as imagens e os dispositivos materiais e imateriais, entendendo-os como narrativas e perguntando a quem e a que servem? O que perpetuam? Quando/como transgridem?

Nesta sessão os modos de narrar se cruzam incontornavelmente com uma metáfora, expressa ainda na coletânea: a ideia de nebulosa. Ela evoca as configurações possíveis, embora sempre moventes, que pressupõe cada nuvem e conjunto de nuvens nas suas formações, no seu ir-e-vir, nos seus choques, em sua estabilidade relativa, em sua capacidade de se transmutar ora nas tempestades que varrem os céus das ideias feitas, ora lentamente na chuva fina que irriga o solo e o fertiliza.

Experiências, tempos e sistemas abertos e conflituais de interações, de relações, de nexos, de sentidos, conduzem as aproximações sobre modos de narrar reunidos em torno das ideias de intriga, vestígios que insuflam a formação das nebulosas. É por meio da intriga – ou o modo como miramos e construímos ou montamos o objeto a partir de questões – que se alinhava o narrado, com todas as instabilidades que as questões e intuições podem provocar. É também com o trabalho com os vestígios da experiência – com os documentos em suas distintas formas – que se compõe a narrativa. É no entrelaçamento dessas duas dimensões contempladas na coletânea – a da intriga e do trabalho com os vestígios – que o modo de narrar aproxima nebulosas, ao mesmo tempo que outras permanecem soltas, desviantes.

O esforço de montagem das intrigas é uma síntese, e é ela que sustenta toda narração, como lembra Ricoeur. Objetivos, causas, acasos são reunidos, graças aos vestígios acumulados da experiência, sob a unidade temporal de uma ação que assim parece ser total e completa. “É esta síntese do heterogêneo que aproxima a narrativa da metáfora.” (Ricoeur, Tempo de narrativa 1). Contudo, parece ser desejável, como se tenta aqui, não esquecer que são as nebulosas desviantes que, abrindo espaço, mantêm o imprevisível.


Palavras-chave


pensamento urbanistico; narrativa; pensamento urbanistico

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