Última alteração: 2020-08-19
Resumo
Desde os anos 1960, quando inicia-se uma profusão de críticas ao modernismo, inúmeras vertentes buscam trazer novas perspectivas para explicar os equívocos da teoria e da prática modernista no campo da Arquitetura e do Urbanismo (AU). Não só arquitetos/as, mas teóricos/as de outras áreas como, por exemplo, Henri Lefebvre e Jane Jacobs, influenciando o pensamento crítico contemporâneo associado ao direito à cidade. As críticas e propostas metodológicas de análise do espaço também têm destaque, sobretudo, nas práticas universitárias. Se a industrialização e a urbanização eram vistas como caminhos progressivos em direção a uma ideia de “modernização” e “desenvolvimento” (LANDER, 2005), na atualidade, essas “verdades” passam a ser desveladas por diversas teorias contemporâneas.
É preciso lembrar que o ensino de AU no Brasil é profundamente marcado pelos valores modernistas da universalidade, neutralidade e da racionalidade, que evocam a padronização e projetos funcionalistas pensados em função de uma ideia de “homem universal”, que na realidade se constitui de um homem do gênero masculino, heterossexual, branco e europeu. As críticas contemporâneas a epistemologia hegemônica, vem pautando a necessidade de uma abordagem mais complexa sobre a realidade social, que avance para além do recorte de classe: uma visão interseccional que abarque as diversas condições de opressão estruturadas pela colonialidade capitalista. Não por acaso evocamos essas vertentes, pois gostaríamos de trazer questionamentos e caminhos possíveis considerando os desafios sociais, culturais e políticos atuais de nossas cidades. O cotidiano, as experiências, as reflexões, as resistências e rupturas sociais, culturais e políticas que se estabelecem de forma paradoxal no espaço constituem e interferem no processo de produção do conhecimento. Assim, buscamos nessa sessão trazer experiências universitárias que escapam das armadilhas epistemológicas que ainda estamos presos ou vinculados. A proposta é realizar um amplo debate sobre epistemologias na AU.
Nesse sentido, buscamos aqui discutir práticas de ensino, pesquisa e extensão que revelem os limites que nosso campo tem se imposto. Como por exemplo, não apostar na experimentação teórica e teórica-prática para a construção mais ampla de novas epistemes que deem conta das questões contemporâneas de nossa sociedade brasileira e latino-americana. Outro ponto importante é a desconstrução e a construção de novas abordagens, menos eurocêntricas. É preciso dar um giro que coloque no centro nossas experiências como sujeitos e corpos de uma periferia global majoritariamente não branca, onde as desigualdades sociais de classe, raça, gênero, sexualidade e geração emergem problemáticas diferenciais que historicamente tem sido indiferenciadas. Nossas referências estão associadas fundamentalmente a uma crítica decolonial, considerando as contribuições da teoria feminista, em especial relacionadas ao conceito de interseccionalidade, e às categorias de análise e metodológicas, como: sujeitos versus objeto de pesquisa, corpo e espaço, plano e projeto, práticas espaciais, experiências participativas, interescalaridade, etc. Buscando formas de ensino-aprendizagem mais focadas no processo do que no produto. Assim, propomos seis apresentações que trazem experiências variadas de ensino em diferentes universidades, cidades e regiões do país.
O primeiro trabalho, “Epistemologias e metodologias na arquitetura e urbanismo a partir da teoria feminista”, detalha uma trajetória de ensino e pesquisa no campo de AU que busca trazer o debate acerca das possibilidades epistemológicas que as teorias feministas podem contribuir para a fundamentação de um outro olhar metodológico sobre nossas práticas. A apresentação traz a experiência construída em uma disciplina da graduação sobre métodos de pesquisa que tem o desafio de contribuir com o olhar mais amplo sobre os desafios do próprio exercício profissional na atualidade. O segundo trabalho, “Interescalaridade e contiguidade entre o projeto de arquitetura, urbanismo e paisagismo”, parte de pressupostos semelhantes. Contudo, expõe uma experimentação metodológica relacionada à disciplina de planejamento urbano e regional para além de conteúdos teóricos. A experiência apresentada demonstra como articular teoria com exercícios de prática interescalar onde são discutidos diretrizes de planejamento em contexto da periferia metropolitana, até demandas e ações mais concretas que fomentem o direcionamento integrado a projetos de AU, de forma a possibilitar a compreensão relacional entre as partes que formam as cidades e que constituem nosso campo de atuação.
O terceiro trabalho, “‘ACIDADESOUEU’: modos de experienciar cidade no início da formação em arquitetura e urbanismo”, aborda a implantação de um novo Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de AU em uma universidade pública nordestina. Elaborado ao longo de dois anos a partir do diálogo entre discentes e docentes, orienta a formação em AU a partir de temáticas que conectam ensino, pesquisa e extensão. Neste experiência, destacamos a “metodologia da ensinagem” (MOURA, RIBEIRO, 2015) em que docentes e discentes são “sujeitos de saberes” sem sobreposição ao saber do outro. Um desafio diante de uma tradição de ensino superior ainda muito balizada na hierarquia “mestre-aluno”, sobretudo, nas dinâmicas interacionais em sala de aula. Já a quarta apresentação, “A3:HABITAR, uma experiência de corpo afetivo e (re)conexão à Terra no ensino de arquitetura”, propõe-se a compartilhar uma experiência realizada em um ateliê de projeto, parte da reforma curricular de um curso de AU de uma universidade particular no sudeste. A metodologia empregada busca ativar sensações e as relações de estudantes com elementos naturais para deixar emergir do inconsciente as memórias e desejos no exercício integrado de projeto.
Os dois últimos trabalhos nos demonstram as possibilidades de atuação entre universidade e sociedade com ações intricadas entre aprendizado e práticas no território, articulando esferas de ensino, pesquisa e extensão. O trabalho “A construção do sujeito político: da sala de aula para o gabinete do prefeito” nos demonstra o papel fundamental de um curso de arquitetura e urbanismo em cidades pequenas, de forma a estruturar uma relação próxima e transformadora entre estudantes e suas possibilidades de atuação. Por fim, o trabalho “Aprender com nós mesmos: extensão, assistência técnica e nova pedagogia para o ensino de Arquitetura e Urbanismo”, trás uma experiência transformadora de extensão universitária voltada para assistência técnica, efetuando, na prática, um compromisso com as lutas por justiça social. O trabalho finaliza nossa sessão com o objetivo de pensar outras pedagogias para o ensino de AU, ancoradas na realidade dos países do sul, amarrando a importância da extensão como o centro de um novo fazer universitário.
REFERÊNCIAS
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AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018.
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