Portal de Conferências da UnB, VI Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

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Patrimônio Reconstruído
Ana Carolina Santos Pellegrini, Leandro Manenti

Última alteração: 2020-08-19

Resumo


O incêndio que acometeu gravemente um dos edifícios mais notáveis do mundo – a Catedral de Notre-Dame de Paris – trouxe com força às redes sociais e à imprensa um debate que há muito divide os arquitetos: qual conduta deve ser adotada diante da necessidade ou intenção de restabelecimento de patrimônio arquitetônico deteriorado ou desaparecido? Reconstruí-lo segundo a aparência anterior ou adotando nova linguagem, desde que em harmonia com o contexto protegido? Estas são apenas duas de uma ampla gama de possibilidades. A recente polêmica internacional foi precedida localmente pelas discussões subsequentes à trágica e completa destruição do Museu Nacional. Desnecessário dizer que a comoção diante de tais graves infortúnios foi intensa e ampla. Assim como os brasileiros testemunharam a súbita ruína do fundamental museu e seu acervo, o mundo assistiu em tempo real à destruição de parte da cobertura e ao desabamento da agulha da igreja. Em ambos os casos, diante de populações atônitas, uma resposta institucional era urgente, e, tal qual sucedera em 1666, logo após o incêndio que devastou as construções do centro de Londres, e, em 1755, na sequência do terremoto que assolou Lisboa, as autoridades brasileiras e francesas prometeram providências imediatas para colocar em marcha as reconstruções de seus patrimônios. No entanto, se, de um lado, a consternação diante da catástrofe constrange o poder público a tomar rápidas decisões, de outro, a determinação da abordagem apropriada para a intervenção restitutiva requereria tempo e ponderação. Longe de ser consensual ou novidade, o tema do restabelecimento de arquiteturas notáveis desaparecidas é atual e oportuno: seja porque os recursos para registro das imagens das cidades são cada vez mais completos e precisos, oferecendo uma riqueza documental inédita na história da arquitetura, passível de servir de fonte de consulta precisa para tais intervenções; seja porque é natural que, de tempos em tempos, e em função da renovação de panoramas culturais, políticos e econômicos, as visões acadêmicas sejam debatidas e revisadas, em prol da constante atualização do campo do conhecimento.

Desta maneira, a sessão ora proposta abordará esta polêmica modalidade de intervenção no patrimônio arquitetônico construído (ou desaparecido), que é a reconstrução. A fim de fomentar a discussão, os trabalhos aqui reunidos apresentarão uma série de estudos de caso e diferentes pontos de vista a respeito do tema principal da sessão.

O trabalho “Continuidade ou ruptura: o dilema da reconstrução no Renascimento” abordará a restituição de arquiteturas danificadas ou desaparecidas no contexto dos séculos XV e XVI. Além de historiografar a discussão sobre os distintos encaminhamentos possíveis para a intervenção – que vão desde a adoção da diretriz da continuidade estilística até a promoção de algum tipo de ruptura com o passado – o estudo se propõe também a atuar como paralelo às abordagens modernas e contemporâneas do tema. O estudo de caso apresentado é o do Palácio Comunal de Vicenza, mais conhecido como  Basílica Palladiana. A escolha deve-se às sucessivas reconstruções pelas quais passou o célebre edifício, que se notabilizou mundialmente graças à arcada projetada por Andrea Palladio, em 1546, também fruto de uma reconstrução após desabamento.

A apresentação “Entre reconstruções, repristinos e delírios: a memória forçada da arquitetura colonial entre as décadas de 1950 e 1980 e suas consequências para a dissolução do patrimônio eclético brasileiro” mostrará como a temática da reconstrução idealizada do patrimônio colonial, sempre vinculada à repulsa – e, consequentemente, à destruição – da herança arquitetônica e urbanística da fase do Ecletismo, persiste em diversas intervenções paradigmáticas planejadas entre as décadas de 1950 e 1970, e finalizadas nos anos setenta e oitenta. Para tanto, abordará os estudos de caso da reconstrução do conjunto arquitetônico do Pátio do Colégio, em São Paulo, iniciado em 1953; o repristino da antiga Casa de Câmara e Cadeia de Salvador, transcorrido entre os anos de 1969 e 1970; e a “delirante” intervenção sofrida pela Catedral da Sé de Olinda, que dotou a igreja de contornos seiscentistas que nunca tivera, rechaçando a composição eclética do monumento em prol de uma pretensa restauração de seu aspecto original.

O estudo “A reconstrução do patrimônio como forma de superação do trauma da perda, afirmação de identidade cultural e preservação da memória” aborda as transformações no entendimento do conceito de reconstrução pelas cartas patrimoniais ao longo do tempo, e a sua aceitação como prática de restauro e reflexo do amadurecimento da ação preservacionista, principalmente diante do drama da perda da memória ou identidade de uma população frente a eventos catastróficos. O principal estudo de caso é o das recentes reconstruções realizadas na cidade paulista de São Luiz do Paraitinga (gravemente inundada no ano de 2010) após o desmoronamento de grande parte de seus bens tombados, cujo processo de recuperação teve fundamental envolvimento e participação da comunidade local.

O trabalho “A reconstrução do patrimônio arquitetônico e urbano: um debate em aberto” desenvolve como o tema da reconstrução de sítios e monumentos destruídos por sinistros, guerras e terrorismo tem sido objeto de preocupações das principais organizações internacionais voltadas à preservação do patrimônio cultural. O estudo sinaliza o interesse do Icomos pela elaboração de uma carta sobre a reconstrução pós-guerra, especialmente em casos de destruição intencional do patrimônio cultural. O trabalho também aborda a distinção entre as reconstruções motivadas por eventos traumáticos daquelas que visam à exploração turística, justificadas apenas economicamente. Finalmente, o trabalho ocupa-se da reflexão acerca das reconstruções virtuais, como alternativa às grandes polêmicas e aos elevados custos relacionados à reconstrução material.

O último trabalho da sessão aqui proposta intitula-se “Patrimônios reconstruídos: resiliência ou falsificação?” e apresenta como estudo de caso a obra de recuperação do Museu das Missões, transcorrida depois dos graves danos causados pelo forte tornado que o atingiu em 2016. Embora usualmente apresentada como restauração, a operação tem ares de reconstrução, já que o resultado da ampla intervenção remete à sua imagem anterior, mas com nova materialidade. Além de breve revisão sobre precedentes operações análogas, o trabalho analisará e discutirá os resultados alcançados na obra de recuperação do museu, a fim de contribuir para a reflexão a respeito da reconstrução como modalidade possível e lícita de preservação do patrimônio.

Palavras-chave


patrimônio; reconstrução; autenticidade

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