Última alteração: 2020-08-18
Resumo
Não existem processos modernizadores que não produzam subprodutos. Esta sentença explicita o que esta Sessão Livre intenta discutir. Embora faça parte da crítica sobre as operações urbanas levadas a cabo ao longo da Era Moderna, os processos de arruinamento, de demolição, de desconsideração das pré-existências citadinas e de representações desmerecedoras das configurações urbanas prévias às propostas de intervenção urbanas ainda são timidamente abordadas pelos historiadores e críticos urbanos. Dentro de certa linha historiográfica partilhada por inúmeros colegas, os projetos urbanos e arquitetônicos são vistos em “chave positiva”, incorrendo em uma escrita da história das cidades que supostamente é evolucionista e, além, decorrente de um processo de amadurecimento profissional. É corriqueiro, então, que dimensões atreladas às modificações espaciais que se historiam sejam vistas como desimportantes ou até mesmo inexistentes.
Nos últimos tempos, tem sido possível encontrar bibliografia da área da arquitetura, do urbanismo e da história urbana que tem se despertado ao debate dos subprodutos das grandes interferências modernizadoras. Tal qual explicitado no título desta sessão temática, estamos começando a tratar das modernizações espaciais e de seus “outros”: demolições intencionais, celebração de ruínas e estabelecimento de processos de arruinamento; enunciação de tabulas rasas em sítios com longa tradição de ocupação e, também, de investigações acerca de representações imagéticas e literárias de grande potência de convencimento, de maneira a despertar uma pauta de adesão aos “grandes trabalhos” de alteração do espaço. Uma das obras recentes que trata desta questão é a do arquiteto e historiador estadunidense Daniel Abramson (2016). Seu livro Obsolescence: an architectural history explora como a Ilha de Manhattan, na cidade de Nova York, foi transformada em um contínuo canteiro de obras nas primeiras décadas do século XX, decretando, com suporte da imprensa e apelo comercial, a obsolescência de prédios que contavam com 10, 15 anos de inauguração. Este mote da substituição de estruturas espaciais recentes ou outras mais “dignas” dos tempos modernos encontra eco em muitos lugares ao redor do globo, e com grande proporção nas cidades brasileiras, que nesta sessão procuramos investigar.
Desta maneira, o grupo de investigadores aqui reunidos tem, desde a última década, se debruçado sobre dimensões do universo propositivo da arquitetura e do urbanismo nacional, e se colocando a tarefa de lê-lo a contrapelo, conforme a precisa e poética expressão de Walter Benjamin (BENJAMIN, 1994, p.225). A história escovada a contrapelo, para Benjamin, permite não apenas a percepção das dimensões constituintes dos processos culturais, mas, em especial, ancora na escrita da história as estruturas fundamentais que estão escondidas na narrativa da superfície dos eventos. Assim, o trabalho 1 da sessão lida com uma das perguntas mais difíceis da compreensão dos processos investigativos do grupo ao enunciar que “a ruína compõe o cotidiano das cidades e da rede de significações que constrói a história, a memória e a identidade cultural. Mas, o que é uma ruína?” Como resposta, o trabalho mostra como concomitantemente à formação do IPHAN, a ideia de ruína passou a ser mobilizada como fundamental para a compreensão da seara do que valeria a pena ser mantido no rol dos bens patrimoniais. O trabalho 2 desenvolve a discussão sobre as ruínas nos processos de modernização das cidades brasileiras e procura mostrar como o “processo de construção das noções de moderno e progresso assim como dos valores e sensibilidades sobre a paisagem construída herdada poderia encontrar lugar” em um país “novo”, onde tudo estava “por se fazer, como muitos intelectuais e técnicos defendiam no início do século XX”. Curiosamente, o trabalho 3, dedicado à compreensão da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, em São Paulo, nos revela como o templo de origem colonial, e de grande relevância cultural para a cidade de São Paulo, por ter sido vinculado aos movimentos abolicionistas, foi descartado pela administração Prestes Maia, embora estivesse coeso e sólido, por estar, literalmente, no eixo viário de seu complexo de avenidas. Com indicação, por Mario de Andrade, para compor o universo de bens a ser tombado em São Paulo, a igreja foi divulgada como necessária ao progresso da cidade, mas não mediante à sua manutenção, e, sim, por meio de sua demolição. Esta temática é explorada também pelo trabalho 4 dedicado à compreensão da cidade do Recife nos primeiros tempos do século XX. Analisando as escolhas políticas, divulgadas como técnicas, o trabalho debate as demolições efetuadas no Recife, “por outro ângulo, enfatizando o que foi varrido ‘pela tempestade do progresso”, e procurando mostrar que os grandes arrasamentos, que foram silenciados na história da localidade causaram críticas densas, que agora são recuperadas.
O trabalho 5, abordando também o Recife, mostra como aquela cidade substituiu estruturas fundamentais para sua dinâmica urbana – as pontes – divulgando esses processos de modificação à luz da técnica. Esta dimensão, imperativa para a consolidação dos discursos acerca dos melhoramentos urbanos, apartava ou pelo menos intentava apaziguar os ânimos da sociedade na avaliação das “obras de arte” por serem fruto de especialistas. A ideia de cultura técnica, então, que o trabalho aborda, é fundamental para compreender as muitas faces das modernizações e seus discursos. Por fim, o trabalho 6 explora para a década de 1970 a expansão da especulação imobiliária na Zona Sul carioca, ao abordar o episódio complexo de demolição do Solar Monjope, edificação neocolonial que em processo de tombamento, teve seu rito patrimonial sustado pelo regime civil-militar, de forma que se construíssem torres de alto padrão habitacional. Manifestações sociais, verificadas em entidades de classe e em pessoas interessadas na área levaram a medidas protetivas que, se não impediram a demolição da casa, garantiram a instauração da preservação do verde, revelando, talvez, o fim de um discurso verificado nos trabalhos acima, por outro, que instaura uma nova fase dos atos modernizadores no país em tempos de redemocratização.
REFERÊNCIAS
ABRAMSON, Daniel. Obsolescence: an architectural history. Chicago: The University of Chicago Press, 2016.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e a história da cultura. 7ª. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.